domingo, 1 de dezembro de 2013

Puf versus Pluft

Praticamente tudo o que se poderia falar mal (para o bem!) do teatro infantil, já foi dito (ou escrito) pelo crítico e dramaturgo Dib Carneiro Neto em seu livro Pecinha é a vovozinha! (DBA Editora). Mas, até correndo o risco de repeti-lo em alguns momentos, não posso deixar de fazer algumas considerações pessoais sobre o que vejo – ou não vejo – no teatro que se faz, hoje, para nossas crianças.
O livro de Dib:
considerações
pertinentes e
oportunas
sobre
teatro infantil

De um modo geral, está evidente pra mim que a dramaturgia para crianças padece, quase sempre, da mesma praga que, há anos, persegue a literatura infantil: o estranho princípio de que toda criança é estúpida e incapaz.

Assim, invariavelmente, os textos levados à cena, parecem pressupor que nenhuma criança será capaz de entender o que não for explícito ou, preferencialmente, pré-mastigado para ingestão – como fazem muitas aves ao alimentarem seus filhotes.

Mas por que essa tendência – ou recorrência?

Ouso tentar encontrar respostas. Ou, no mínimo, provocar o debate e novos questionamentos inevitáveis...

Vejo uma cruel - e talvez involuntária – participação da escola, nesse sistema. A escola (e aqui me refiro tanto à instituição quanto a alguns educadores isoladamente) tornou-se, com o passar dos anos, uma interlocutora ou mediadora essencial entre Teatro e público, exigindo, de alguma forma, em contrapartida, a instrumentalização do primeiro visando à “formação” do segundo.

Assim, da mesma forma que a leitura obrigatória de um José de Alencar nos meus tempos de ginásio era uma tortura para nós, crianças, meninos e meninas de hoje são obrigados a “curtir” o tipo de teatro que a escola lhes impõe, com fins didáticos muitas vezes questionáveis. Da mesma forma que os autores modernos e contemporâneos de quarenta anos atrás eram persona non grata no currículo escolar, o teatro que se faz hoje só adentra o território da escola se tiver uma linguagem ou estética, no máximo, mariaclaramachadiana. E é triste ver que o fantasminha Pluft, muitas vezes, ainda tem que disputar a tapa espaço com o ursinho Puf!

Impulsionado por grandes compras governamentais, o mercado de livros para crianças viveu um grande boom, nas últimas décadas, no Brasil. Em um sistema similar e em menor escala, o teatro para crianças também tem conquistado cada vez mais espaço, impulsionado por leis de incentivo e mecanismos que favorecem uma criação e expressão artísticas pedagogicamente engajadas ou objetivas. Aí, alguns artistas são forçados a ceder a pressões e a fazer concessões para se manterem vivos.

É quando, inevitavelmente, são obrigados a aderir a uma ideologia do politicamente correto que o sistema adota, privilegia e até endeusa. É a ditadura dos finais felizes e moralizantes; da punição exemplar, inapelável e imediata de vilões caricatos ou estereotipados (os vilões reais, bem o sabemos, sempre podem se valer de embargos infringentes e protelatórios e outros mecanismos que favorecem a impunidade – mas este seria um tema não adequado às nossas crianças); do patrulhamento de personagens (você pode falar mal do tabagismo, mas não pode ter um personagem tabagista em sua história); ou da seleção e abordagem de temas a partir de conteúdos didaticopedagógicos desejáveis.

O sistema criou e alimenta uma cadeia perversa e altamente danosa à formação da criança, quer seja como indivíduo, cidadão ou futuro apreciador de Arte. O governo incentiva o teatro que é feito para ser levado à escola; que, por sua vez, adquire o espetáculo que corresponde às expectativas ou a uma ideologia afinada com as políticas governamentais de Educação ou de fomento à produção artística e cultural; que leva os produtores teatrais a optar por montar espetáculos potencialmente simpáticos aos governos e escola, de modo a assegurar aprovação nas leis de incentivo e a venda do seu produto; etc., etc., etc...

A dramaturgia? Ela que se adapte, se quer sair do papel, virar espetáculo e chegar à criança.

Que estímulo tem então o dramaturgo de ofício ou vocação, se raramente lhe solicitam textos originais, mas, quase sempre, apenas adaptações de best-sellers infantis ou juvenis do momento, eternos contos de fadas clássicos, blockbusters do cinema, desenhos animados da tv ou até games? Por que ou pra que escrever histórias afinadas com a nossa rica diversidade cultural, nosso folclore, nossa língua, nossa História, nossos costumes e, até, nossos erros, pecados e vergonhas, se o teatro tem sido forçado a abdicar de sua essência artística e cultural para servir prioritariamente aos interesses pedagógicos ou ideológicos de escola ou de governos?

Nesse cenário, é cada vez mais raro encontrar-se um dramaturgo independente e livre; que escreva por fidelidade apenas ao seu próprio pensamento e ao seu público final (a criança); que tenha autonomia crítica e estilo próprio; que sirva à sua arte e não ao sistema político ou econômico que o manieta e sustenta.

E é nessa batida que, cada vez que ouço “Puf!”, num palco, penso logo que não é o nome de um personagem urso, mas uma onomatopeia que indica que mais um dramaturgo saiu de cena como se por encanto – ou maldição.

(Há mais a falar sobre o tema, mas fica para posts futuros.)



terça-feira, 14 de maio de 2013

A nova dramaturgia do umbigo


Outro dia fui assistir à leitura de dois textos dramáticos num evento sobre a produção dramatúrgica contemporânea.

Em comum, nos dois textos lidos, é que ambos foram escritos por atores. Mais que isso, porém, outras similaridades foram sendo reveladas ao longo de cada leitura - não apenas por mim, mas por vários presentes, como se pôde comprovar depois, no tradicional bate-papo com os autores, que costuma fechar esse tipo de evento.

O primeiro texto, logo se viu, era um conto. Um ótimo conto, mas um conto: nunca uma peça teatral. Embora houvesse dois personagens, apenas um tinha voz e alguma ação. E todo o discurso da personagem falante era marcado por um tom confessional e pela frontalidade em relação à plateia. Um ator lia as rubricas que marcavam as mudanças de tempo e de cena. O que seria a segunda personagem, entrou mudo e saiu calado, sem dizer uma só palavra. Não havia diálogos. Não havia contracena: lateralidade zero.

Apreciei a leitura como um leitor lê um livro. Ou como uma criança a quem a mãe ou o pai lê histórias para dormir. Por vezes, até fechei os olhos e preferi apenas ouvir o som do que era dito – já que eram mesmo só rubricas intercaladas com longos solilóquios da protagonista.

Uma fala da personagem falante me chamou a atenção: “Eu poderia protagonizar eu mesma!”. E foi o que fez a autora, sendo atriz e protagonista do seu próprio texto.

A segunda leitura seguiu a mesma linha: texto confessional, só que com um tom mais memorialístico, recheado de lembranças da infância do protagonista e com progressão temporal da narrativa, dos tempos de menino à juventude. Havia alguns diálogos esporádicos, mas o que prevalecia mesmo era o discurso da personagem central, suas memórias e sua minuciosa descrição de acontecimentos passados e de personagens que são apenas referidos na narrativa.  O protagonista masculino era o narrador e, também, todas as personagens masculinas ocasionalmente necessárias na composição dos diálogos que ponteavam a narrativa.  

Outro belo conto: não dramaturgia – ou, pelo menos, não o que eu entendo como tal.

Tudo bem: alguém vai dizer que minhas ideias sobre dramaturgia são conservadoras, ultrapassadas ou caretas. Ou que eu não estou sintonizado com as novas tendências do teatro contemporâneo.  Podem até me acusar de ir pouco ao teatro e que, por isso, não sei o que estou dizendo.

Pode ser – sei lá.

Mas fiz a opção de ser fiel a alguns princípios e um deles é não me tornar refém de tendências, não agir nem pensar maria-vai-com-as-outrasmente. Então, vou na lata.

DRAMATURGIA DO UMBIGO  Pude observar – ou apenas confirmar o que já detectara em outras ocasiões – que o ator que escreve, nunca escreve para outro ator, mas, invariavelmente, escreve para si próprio. Falta-lhe o desapego e o distanciamento que o dramaturgo não-ator tem ao escrever uma peça, ao elaborar personagens que só poderão ser representados por atores de verdade, com seu ecletismo, diversidade, pesquisa e entrega. Para o ator/dramaturgo é conveniente, fácil e confortável representar a si próprio, já que conhece, melhor que ninguém, as intenções subjetivas de sua personagem e as inflexões mais adequadas para cada “bife” que criou para si mesmo. O ator/dramaturgo recusa o maior desafio que só os grandes atores almejam e perseguem: a possibilidade de representar o outro, o diferente, o oposto de si, o estranho.

Assim, é comum o ator/dramaturgo cair na armadilha fácil de querer transpor para o palco o discurso que seria mais adequado a outro gênero literário, como a poesia, o conto ou o romance. Ou pior: tenta levar para a cena – para sofrimento da plateia - o discurso que melhor caberia em uma sessão de terapia ou análise freudiana. É o que eu chamo de “dramaturgia do umbigo”.

Muito do que eu pude perceber durante as duas leituras ainda acabou sendo ratificado ao final, no debate com os próprios atores/dramaturgos. Ambos relataram que o que haviam apresentado eram, originalmente, um conto ou escritos esparsos sem fins dramatúrgicos; e que os adaptaram ou compilaram especialmente para o evento. A autora do primeiro texto esclareceu que nem havia propriamente personagem em sua história original – apenas a narradora – e que criou a segunda personagem (a que eu disse que “entrou muda e saiu calada”) para agregar um viés mais teatral ao texto.

Já o ator/autor do segundo texto informou que “costurou num texto só” muita coisa que havia escrito antes. Tendo feito já algumas experiências com dramaturgia coletiva em seu grupo de teatro, aquela era a sua primeira experiência de construção de um texto dramatúrgico individual. Também reconheceu que aquele era um conto, não um texto teatral.

Questionado por alguém da plateia sobre a ausência de diálogo e contracena entre personagens, disse sentir-se à vontade para falar diretamente ao público, numa relação de frontalidade que considera natural e instintiva para ele e para as novas dramaturgias.

"GRANDE PROBLEMA"  Duas outras colocações do ator/dramaturgo no debate corroboram minha postura crítica em relação a grande parte da produção dramatúrgica contemporânea, que parece insistir em prescindir do trabalho de um dramaturgo de ofício. Ele afirma que escreve para si mesmo e que a maioria do que escreve, ninguém vê; e que quando é o ator que lê o que ele próprio escreveu (para o palco) “já se elimina um grande problema”. Ou seja: ver outro ator dando vida ao seu texto, nem pensar!

O dramaturgo de ofício, por mais que defenda a integridade de seu texto ante diretores, produtores e atores, sabe que seu texto não é nada sem o concurso desses outros profissionais do teatro. O autêntico dramaturgo, nunca escreve para si mesmo, porque sabe que seu texto não existe sem atores que o digam diante de uma plateia. Por isso, o verdadeiro dramaturgo é movido pelo desapego, tão necessário a uma arte de natureza intrinsecamente colaborativa como o teatro – em oposição ao individualismo natural e característico dos demais gêneros literários.

Por tudo isso, não hesito em recomendar aos atores que queiram se expressar através do teatro, que o façam – até por respeito ao seu próprio ofício de ator – essencialmente como atores. Se querem escrever, outros gêneros literários os acolherão simultaneamente, sem prejuízo de sua atuação em cena. Mas, se desejam escrever para teatro, publiquem seus contos e poemas em livros; discutam seus traumas e frustrações na terapia; procurem conhecer as regras e técnicas específicas do ofício dramatúrgico (até para subvertê-las); reabilitem os diálogos; e – especialmente - escrevam peças para outros atores. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como cortar a cabeça de um dramaturgo (e outras)


Para reduzir os custos de seu próximo espetáculo, o produtor não hesita: a primeira coisa que ele corta é a cabeça do dramaturgo. E são vários os métodos aplicados nessa decapitação. Pra esclarecer melhor como a coisa funciona, listei alguns:

1.       MONTAR CLÁSSICOS
A lógica é simples: se o texto se tornou clássico é porque já foi escrito. Então, pra que contratar um dramaturgo? Além disso, já dever ter sido montado e testado, o que diminui os riscos do investimento.

2.       MONTAR AUTORES MORTOS
Mas que tenham morrido há mais de setenta anos, prazo determinado por lei para que uma obra caia em domínio público e o produtor não precise pagar direitos ao autor ou a seus insaciáveis herdeiros.

3.       ACUMULAR FUNÇÕES
Alguns produtores fazem, eles próprios, adaptações de obras que desejam produzir, evitando ter que pagar pelo trabalho profissional de um dramaturgo adaptador. Também é comum que diretores façam isso, especialmente quando são também os produtores, acumulando, assim, três funções primordiais em um espetáculo: dramaturgia, produção e direção.

4.       FAZER ADAPTAÇÕES LIVRES
É a forma mais comum de fugir a duas responsabilidades: pagar direitos autorais e contratar um dramaturgo. É um dos métodos preferidos por grupos e companhias que adotam os chamados processos colaborativos na criação de seus espetáculos: apropriam-se de um texto literário (ou de uma bula de remédio, dependendo do grau de contemporaneidade da proposta), reúnem elenco, diretor, o psicanalista do diretor e mais alguém que esteja passando pela rua na hora e cada um chora suas pitangas pra construir um texto-manifesto individual sobre a angústia e frustrações -que já compartilharam previamente, em suas redes sociais. Pra fazer uma suruba intelectual-deprê-carente-afetiva dessas, quem precisa de dramaturgo? Corta fora!

5.       FAZER ADAPTAÇÕES TRANS E INTERMÍDIA
Se bombou no YouTube ou foi sucesso na tv ou telona, por que não levar para o palco? Afinal – como no caso dos clássicos – o filme já foi testado com o grande público, portanto, dá pra apostar que também será sucesso no teatro. E, se o filme (ou desenho animado, no caso do teatro infantil) já tem cenas e diálogos prontos,  mais uma vez ninguém vai contratar um dramaturgo! Ainda mais que já vai ter que desembolsar uma grana pelos direitos de algum roteirista ou estúdio de cinema...

6.       COMPRAR PRONTO
É mais ou menos como o método anterior: o produtor fica sabendo de algum texto que vai bem off Broadway  ou nos palcos londrinos e decide montar aqui o que é sucesso por lá. E um sucesso no Exterior, mesmo que ele tenha que pagar pelos direitos, já vem com um certo valor agregado – uma espécie de certificado de qualidade maria-vai-com-as-outras que a contratação de nenhum dramaturgo brasileiro jamais poderia agregar. Então, compra um texto pronto e corta o dramaturgo!

7.       JUNTAR PRA FAZER
Junte a vaidade inerente a qualquer artista e explore-a em favor da criação de um espetáculo-cabeça. Faça o elenco trazer objetos e figurinos de casa, mande-os improvisar cenas e situações inusitadas e sem nexo, costure tudo sem linha, cole sem cola, e apresente o produto final como uma criação coletiva em que todo mundo se acha autor, mas ninguém assina a autoria no cartaz da peça. Se o dramaturgo não é ator e não está disposto a participar de processo tão lúdico e construtivo, ele que vá se danar: que forme seu próprio grupo, que se torne produtor, contrate diretor e elenco e monte o texto que ele, sozinho, escreveu!

Nem todo produtor, é bom que se diga, age dessa forma. Porque há outros caminhos, para cortar custos. Alguns desses gatos pingados que ainda contratam dramaturgos costumam, entretanto, justificar a contratação do profissional com uma recomendação bem (in)comum:

“- Vou montar A casa de Bernarda Alba, de Lorca, e quero que você me faça uma adaptação do texto cortando de quatro a cinco personagens: meu elenco é pequeno...”

Mas aí, as cabeças que vão rolar são as de outros profissionais: as atrizes. E o produtor – mentor intelectual do crime – apenas precisa de um cúmplice: não de um dramaturgo.


Resposta a um comentário


Recebi em meu e-mail, mensagem de um ator e produtor contrário aos meus pontos de vista sobre dramaturgia contemporânea, também publicados neste blog.

A mensagem se resumia a três frases, que transcrevo aqui, literalmente:

“Enquanto se faz se vive. Uma reflexão é como um bom texto teatral. Você se tenta esconder quem faz .” (sic)

A despeito dos erros de ortografia e/ou digitação, me esforcei para tentar compreender o pensamento dele e respondi a mensagem da forma transcrita a seguir:

Gostaria de comentar suas observações sobre minha crítica ao teatro contemporâneo - em particular, à dramaturgia contemporânea.

Sobre a simultaneidade do "fazer" e o "viver" (se bem entendi o que você quis dizer), é justamente este um dos maiores problemas que aponto no teatro contemporâneo. É muito comum que os atores supervalorizem a sua experiência pessoal em detrimento da expectativa do público. No palco, muitos atores dão o máximo de si (o que pode ser muito pouco) para representarem apenas a si mesmos. É um processo que pode lhes ser muito prazeroso, mas que é individual e íntimo: o público não compartilha necessariamente desse orgasmo do ator. É como masturbação: quem goza é quem a pratica. Um ou outro que assiste até pode sentir alguma excitação, mas o gozo mesmo é do punheteiro. 

Por isso, não dá pra aceitar que, via de regra, "uma reflexão é como um bom texto teatral". Num palco, esse tipo de reflexão, muitas vezes, não passa de uma punhetação pseudoartística ou pseudointelectual. O bom texto teatral é de outro nível. Principalmente, porque é o suporte básico para o ator exercitar e exibir suas competências e o seu talento - e não as suas frustrações, angústias e neuroses.

PROFISSIONAIS OU AMADORES? Se o ator entende que seu trabalho é interpretar a si próprio, obviamente, ele escolheu mal a profissão. Afinal, todos nós, em nossas pobres vidas, já interpretamos a nós próprios todo o tempo, sem que façamos disso um ofício ou profissão.  Quantas vezes não “alugamos” nossos familiares e amigos chorando nossas pitangas existenciais ou incompetências afetivas? Ou pagamos para sermos ouvidos por nossos terapeutas? E não podemos ser considerados, todos, atores, quando mentimos socialmente em nosso dia a dia? Somos, certamente, atores amadores, já que não cobramos ingresso para que nos vejam praticar nossas mentiras ou desfiar nossas lamúrias cotidianas.

A essência do exercício do ator é representar um papel, é ser quem ele não é, é ser capaz de incorporar uma personagem e, mesmo atrás de uma máscara ou de um nariz vermelho, ser reconhecido como falso, verdadeiro e verossímil, ao mesmo tempo.  E isso é feito mediante um pacto mútuo, entre ator e espectador, em que o segundo paga (nem sempre com dinheiro; essa é uma convenção simbólica) para ver o primeiro.

A arte do ator, claro, pode ser colocada a serviço de outras linguagens, como a Poesia. Mas, ainda assim, o ator em cena deverá estar representando o/um poeta, não a si próprio. O texto, mais uma vez, é seu suporte. Mesmo quando o ator é o próprio autor do poema que apresenta num palco, ele deve – se é um ator de verdade – fazer o papel do poeta, nunca do ator que é. Assim, se o texto é um poema, é estritamente um poema: o fato de estar na boca de ator, num palco, não faz dele um texto dramatúrgico.

Em suma - parafraseando Pessoa - o ator é, antes de tudo, um fingidor. E acho que o que está dito acima explica por quê.

(P.S.: Não tenho como comentar sua última frase, que não me parece fazer qualquer sentido.)

sábado, 13 de abril de 2013

Vendendo o meu peixe

Quero aproveitar o espaço desse blog para também divulgar alguns dos meus textos dramatúrgicos inéditos, para que os leitores, democraticamente, façam sua avaliação crítica. A divulgação dos textos visa também, é claro, tentar provocar em produtores, diretores e atores um possível interesse por uma montagem. Se rolar, podemos negociar.

Brasil: Violência e Relações Sociais




Pra começar, selecionei o meu texto curto Por que o espanto? (Ou: É proibido atirar nas placas),que, recentemente, foi um dos vencedores do projeto Dramaturgias Urgentes, promovido pelo Ministério da Cultura e Centro Cultural Banco do Brasil/SP, onde aconteceu uma leitura dramática em fevereiro/2013.
Para conhecer o texto na íntegra clique aqui.

Em breve, outros textos inéditos e premiados também serão postados no blog.

Do fundo do baú


Revirando velhos arquivos em meu computador, encontrei um artigo que escrevi em 2002 (apenas dois anos depois da minha estreia como dramaturgo), e que cheguei a publicar não me lembro mais onde (acho que na Revista de Teatro, da SBAT). Reli, fiz algumas pequenas atualizações, correções de rumo e ortográficas, e achei oportuno republicar aqui, já que pouca coisa mudou nesses pouco mais de dez anos (além da queda do trema e de alguns hífens e acentos, claro)...

 Os dramaturgos estão mortos

Os dramaturgos estão mais vivos do que nunca. Claro, estou falando de Shakespeare, Nélson Rodrigues e, talvez, Brecht. E, claro, falo também de muitos diretores e atores, apologistas de uma dramaturgia própria, sem dramaturgos. O dramaturgo à moda antiga, aquele que se senta diante de um papel em branco e escreve uma história, esse já está em outra: mortinho da silva.
Antes de mais nada, não quero apenas ressuscitar aqui uma nova/velha polêmica sobre o texto teatral; sobre se o texto é ou não é teatro enquanto não vai parar na boca do ator em cena; ou se o diretor é o verdadeiro autor da obra teatral; se o ator pode ser também um autor da história que interpreta. Apenas quero defender o espaço de atuação de um profissional tão importante no fazer teatro, como qualquer outra peça desse complexo mecanismo.
Se, no cinema, o roteirista é sempre chamado a escrever e reescrever uma história para adequá-la ao orçamento do produtor, ou mesmo às ideias do diretor, o mesmo não ocorre no teatro, onde diretores, atores e até figurinistas se sentem no direito de meter o bedelho e recompor diálogos e sequências cênicas, sem qualquer consulta ao autor da história.
Há diretores que afirmam taxativamente, que só encenam autores mortos, porque estes não podem reclamar. Felizmente, há exceções. Conheço um diretor que prefere montar autor vivo. “Um autor vivo ao alcance de um telefonema é a minha melhor fonte de consulta e esclarecimentos”, justifica.
Entretanto, o processo colaborativo – ou qualquer outra denominação similar sob a qual se abriga – envolvendo diretor, elenco e, às vezes, diretor de arte, cenógrafo, figurinista ou diretor musical, quase sempre ignora a existência de um profissional do texto: o dramaturgo.
Após lerem todas as teorias sobre teatro, participarem de todos os workshops sobre técnicas de artes cênicas, estudarem os clássicos gregos à exaustão, diretores e atores, em sua maioria, não conseguem pôr em prática o simples contar histórias e, quando o pano é aberto, o que se vê é, quase sempre, o privilégio da forma em prejuízo do conteúdo. Espetáculos feéricos, meticulosamente marcados e coreografados, com cenários dinâmicos e  grandiosos – ou, ao contrário, palcos (e, às vezes, atores) inteiramente nus, têm sido a tônica do que se vê em cena. E a crítica especializada lhes tece loas de experimentalismo revolucionário, estética vanguardista e discurso contemporâneo.
VELHOS E NOVOS Todas as experimentações recentes, porém, são mais plásticas, visuais. A linguagem, no Brasil, praticamente não se renova desde Nélson Rodrigues, Guarniéri ou Plínio Marcos. Encenadores e produtores não se arriscam com novos textos e, principalmente, novos autores. Preferem regurgitar o que já foi renovador um dia. No teatro infantil então, a falta de ousadia é gritante. Basta ver a programação de teatro de qualquer metrópole cultural do país, para se constatar a predominância de adaptações de contos de fadas e clássicos da literatura infantil, roubando ainda, aos pais, o doce hábito de contar histórias à cabeceira de seus filhos, como faziam os pais de antanho.
Prescindir de se ter um dramaturgo à mão pode ser também conveniente à produção, por razões econômicas (voltarei a esse tema oportunamente.). Sai mais em conta montar uma história de domínio público, que contratar um dramaturgo para escrever uma história inédita. Adaptar um clássico também é coisa que qualquer diretor pode ir fazendo, durante os ensaios, com a ajuda dos atores.
Outro recurso usado é o de comprar direitos de autores estrangeiros, apostando em que o que é sucesso na Europa ou em Nova York, vai estourar também aqui. Nesse caso, paga-se um tradutor a preço fixo por página e evita-se o risco de investir em um autor nacional pouco conhecido. Nesses casos, não seria um despropósito pensar que falta a quem escolhe textos para encenar, qualquer embasamento literário ou artístico mais específico, usando, para tal, critérios exclusivamente econômicos e mercadológicos.
Não se pode deixar de fazer uma referência aqui, ainda, à caçula das dramaturgias: a dramaturgia do ator. Dramaturgia do ator, pra quem não sabe, é aquele processo de criação em que o diretor dá um mote (ou nem isso) e o ator se desdobra em improvisações para criar situações, cenas, coreografias e diálogos que depois, no programa impresso e no cartaz, não recebem crédito ou são assinados pelo diretor. Grande parte dos atores, sobretudo os mais jovens, adora o processo, e, com impressionante estoicismo, sente-se privilegiada por ter participado da criação. Atores veteranos, no entanto, se ressentem da ausência de textos prontos, tramas minimamente elaboradas, personagens definidas (mas não concluídas) que lhes permitam o exercício menos visual/coreográfico e mais psicológico/interior de interpretação. Em trabalhos construídos coletivamente, já vi atores se recusando a dizer um texto por não concordarem com o que o dramaturgo escreveu, mesmo tendo este apenas dado forma às improvisações realizadas pelo próprio elenco. Também há situações em que o ator não sabe o que é ou como empregar adequadamente um pronome oblíquo, desconhece a função de um advérbio e não tem a menor idéia do que seja um verbo defectivo, mas julga que é mais capaz de escrever um texto que um dramaturgo. Situações inversas – em que um dramaturgo se sente o único ou o melhor ator para o seu texto - , embora existam, são bem mais raras, mas tendem a se tornar mais comuns por uma questão de sobrevivência do profissional.
           Talvez nem fosse necessário dizê-lo, mas tudo o que foi dito acima é uma generalização acerca de observações feitas por mim. Há exceções, honrosas exceções, mas alguns encenadores e atores precisam entender que nem sempre um dramaturgo quer competir com eles pela autoria do espetáculo. Muitas vezes, o que ele quer é apenas sobreviver ou ter assegurado seu espaço de trabalho, como qualquer profissional. E deve lutar por esse espaço como diretores e atores lutam pelos seus. Nada impede, entretanto, que essa luta seja pautada pela generosidade e respeito profissional recíprocos. Cada qual no seu cada qual.


sexta-feira, 12 de abril de 2013

Dramaturgia: nem Poesia, nem terapia


Confesso que tenho ido pouco ao teatro, de uns tempos para cá. Mesmo sendo um dramaturgo.

É que sinto algum desconforto (não me refiro, aqui, ao desconforto inerente a toda obra de arte que se preze) com quase tudo que vejo e ouço em cena, no chamado teatro contemporâneo. Ou que é celebrado como tal.

Por isso, senti uma necessidade de me posicionar pública e oficialmente, compartilhando com mais pessoas aquilo que quem me é mais próximo já sabe.

Assim, tive o cuidado de relacionar alguns aspectos comuns a alguns espetáculo que vi, críticas elogiosas que li, ou mesmo, entrevistas de alguns dramaturgos, atores e diretores. A carapuça – como convém a esse tipo de análise – é genérica e democrática: quem quiser que a vista.

O indivíduo morreu. E morreu duplamente: como autor e como personagem. Vejo predominar uma dramaturgia dita coletiva, participativa, colaborativa, ou seja lá que nome se adote. O indivíduo autor, capaz de escrever sozinho um texto que encenador e atores possam levar a um palco, tornou-se uma aberração anacrônica e inaceitável. O resultado, salvo raríssimas exceções, é uma dramaturgia caótica, sem sentido, sem lógica, sem unidade. Com várias cabeças pensando e criando um texto, este, muitas vezes não se amarra e nem fecha. É claro que essa pode até ser uma possibilidade ou uma intenção real do espetáculo.

Mas, quando a fórmula se repete, também se desgasta. E tudo fica tediosamente igual e previsível.

MAIS CADÁVERES Se o indivíduo autor não existe mais – ou, pelo menos, já está no corredor da morte – a personagem não fica atrás. Na maioria das vezes, o que vemos no palco são apenas atores dizendo textos fragmentados e, quase sempre, autorais – já que eles são parte do coletivo que construiu a “dramaturgia” do espetáculo. Todos querem dar sua cota para a dramaturgia, esquecendo-se que a maior cota que um ator pode dar é na sua atribuição específica: representar, dar vida às palavras que pertencem a outros. (Os “outros”, no caso, não são apenas os autores, mas, principalmente, as próprias personagens.)

Com autor e personagens mortos, o que vemos nos palco são apenas atores interpretando a si mesmos e tentando convencer o público de que não são quem são.

Nos raríssimos casos em que há personagens em cena, o que não há é sua a personalidade visível, a identidade única de cada uma. Todas são iguais. O que muda é somente a angústia ou a neurose de cada qual. É impressionante como são todas cúmplices e solidárias entre si: todas riem juntas, choram juntas, têm o mesmo vocabulário, os mesmos sentimentos, expectativas, inseguranças, as mesmas reações físicas, cacoetes, prosódia.  Se a dramaturgia não se deu ao trabalho de construir uma personagem, muito menos o fez o ator – mais empenhado em nos mostrar o que ele chamará de “a dramaturgia do ator”.

Com “personagens” tão homogêneas e pasteurizadas, é normal ainda que tudo convirja para um só ponto: a mesmice. Assim, fica difícil haver reviravoltas na trama – quando existe trama - , rupturas, conflitos. Os únicos conflitos possíveis são os conflitos íntimos e pessoais da personagem que o ator quer nos convencer de que não é ele próprio. São, no dizer de experiente diretor de teatro das antigas, “amebas com angústia”. Se uma “personagem” é traída, sempre haverá outra que lhe será solidária e lhe contará que também já passou por isso. E ambas chorarão – ou rirão – juntas da situação.

Personagens não morrem, não chutam o balde ou optam por outro caminho torto. Vilões? Nem pensar! Não há lugar para eles no palco – só na vida real.

Mas quem quer falar da vida real? A dramaturgia contemporânea não quer falar do que acontece no país ou no mundo; ou de qualquer coisa que exista para além da cabeça do ator/dramaturgo ou fora de suas redes sociais.

Há mais um morto nesse enterro coletivo (o trocadilho não foi intencional, juro!): o diálogo. Ele está morto não só na sua elaboração técnica, como em sua essência. O que prevalece é o coro, em configurações diversas e dissimuladas. As personagens não conversam, não argumentam, não se opõem: apenas fazem coro entre si, como um animado jogral de escola. São pequenos solilóquios  e grandes “bifes” confessionais que se alternam e que, quase sempre, nem fazem qualquer conexão entre si. Porque os atores não querem dialogar entre si, mas, o tempo todo, com o público!  

PAREDE DEMOLIDA Alguns dramaturgos contemporâneos até admitem essa preferência em se relacionar diretamente com o espectador. Pra isso, desconsideram de cara a quarta parede, e colocam seus atores fazendo divagações ou discursos particularmente voltados para as primeiras fileiras da plateia - como se o público fosse seu terapeuta de plantão e penico para todas as suas angústias, carências e frustrações. Uma conversa fortuita entre taxista e passageiro, por exemplo, tem mais qualidade artística ou conteúdo filosófico que muita coisa que é levada ao palco, hoje em dia. Mesmo assim, nem sempre funciona, quando transposta para o palco, porque não se leva junto a autenticidade ou verossimilhança das personagens originais.

Muitos dramaturgos até confirmam não ter sequer interesse por uma narrativa, mas têm uma obsessão pela linguagem e pela forma lírica. Ou seja, não percebem que também há uma grande diferença entre Poesia e Dramaturgia – embora os dois gêneros possam, até, convergir ocasionalmente.

Não sei se explica muita coisa, mas acho sintomático que, além do mais, a dramaturgia contemporânea é toda feita por atores, diretores e dramaturgos jovens para plateias predominantemente jovens. Comumente, não vemos atores mais velhos em cena. Parece não há lugar para personagens idosas no teatro contemporâneo – como se os mais velhos sequer fizessem parte da nossa sociedade, da vida real. Alienação ou mera insensibilidade? Acho que ambas, mas não há como recomendar aos jovens que amadureçam logo. (“Jovens, envelheçam!” – dizia Nelson Rodrigues, em vão.)

Minhas impressões acima dizem respeito, claro está, ao teatro feito pelas elites e para as elites. O grande teatro das comédias populares que enchem alguns teatros, não se enquadram nessa análise. E nem quero discriminá-las, no entanto, porque acho que há público para todos os gêneros e propostas. Mas o grande teatro popular não promete nada além de umas risadas e não se arvora a lançar ditames sobre o que é contemporâneo ou experimental. Quem escolhe esse caminho, deve estar preparado para ser bucha de canhão.

(E olha, que eu nem falei sobre o total descaso para com a dramaturgia para o público infantil!...)