quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como cortar a cabeça de um dramaturgo (e outras)


Para reduzir os custos de seu próximo espetáculo, o produtor não hesita: a primeira coisa que ele corta é a cabeça do dramaturgo. E são vários os métodos aplicados nessa decapitação. Pra esclarecer melhor como a coisa funciona, listei alguns:

1.       MONTAR CLÁSSICOS
A lógica é simples: se o texto se tornou clássico é porque já foi escrito. Então, pra que contratar um dramaturgo? Além disso, já dever ter sido montado e testado, o que diminui os riscos do investimento.

2.       MONTAR AUTORES MORTOS
Mas que tenham morrido há mais de setenta anos, prazo determinado por lei para que uma obra caia em domínio público e o produtor não precise pagar direitos ao autor ou a seus insaciáveis herdeiros.

3.       ACUMULAR FUNÇÕES
Alguns produtores fazem, eles próprios, adaptações de obras que desejam produzir, evitando ter que pagar pelo trabalho profissional de um dramaturgo adaptador. Também é comum que diretores façam isso, especialmente quando são também os produtores, acumulando, assim, três funções primordiais em um espetáculo: dramaturgia, produção e direção.

4.       FAZER ADAPTAÇÕES LIVRES
É a forma mais comum de fugir a duas responsabilidades: pagar direitos autorais e contratar um dramaturgo. É um dos métodos preferidos por grupos e companhias que adotam os chamados processos colaborativos na criação de seus espetáculos: apropriam-se de um texto literário (ou de uma bula de remédio, dependendo do grau de contemporaneidade da proposta), reúnem elenco, diretor, o psicanalista do diretor e mais alguém que esteja passando pela rua na hora e cada um chora suas pitangas pra construir um texto-manifesto individual sobre a angústia e frustrações -que já compartilharam previamente, em suas redes sociais. Pra fazer uma suruba intelectual-deprê-carente-afetiva dessas, quem precisa de dramaturgo? Corta fora!

5.       FAZER ADAPTAÇÕES TRANS E INTERMÍDIA
Se bombou no YouTube ou foi sucesso na tv ou telona, por que não levar para o palco? Afinal – como no caso dos clássicos – o filme já foi testado com o grande público, portanto, dá pra apostar que também será sucesso no teatro. E, se o filme (ou desenho animado, no caso do teatro infantil) já tem cenas e diálogos prontos,  mais uma vez ninguém vai contratar um dramaturgo! Ainda mais que já vai ter que desembolsar uma grana pelos direitos de algum roteirista ou estúdio de cinema...

6.       COMPRAR PRONTO
É mais ou menos como o método anterior: o produtor fica sabendo de algum texto que vai bem off Broadway  ou nos palcos londrinos e decide montar aqui o que é sucesso por lá. E um sucesso no Exterior, mesmo que ele tenha que pagar pelos direitos, já vem com um certo valor agregado – uma espécie de certificado de qualidade maria-vai-com-as-outras que a contratação de nenhum dramaturgo brasileiro jamais poderia agregar. Então, compra um texto pronto e corta o dramaturgo!

7.       JUNTAR PRA FAZER
Junte a vaidade inerente a qualquer artista e explore-a em favor da criação de um espetáculo-cabeça. Faça o elenco trazer objetos e figurinos de casa, mande-os improvisar cenas e situações inusitadas e sem nexo, costure tudo sem linha, cole sem cola, e apresente o produto final como uma criação coletiva em que todo mundo se acha autor, mas ninguém assina a autoria no cartaz da peça. Se o dramaturgo não é ator e não está disposto a participar de processo tão lúdico e construtivo, ele que vá se danar: que forme seu próprio grupo, que se torne produtor, contrate diretor e elenco e monte o texto que ele, sozinho, escreveu!

Nem todo produtor, é bom que se diga, age dessa forma. Porque há outros caminhos, para cortar custos. Alguns desses gatos pingados que ainda contratam dramaturgos costumam, entretanto, justificar a contratação do profissional com uma recomendação bem (in)comum:

“- Vou montar A casa de Bernarda Alba, de Lorca, e quero que você me faça uma adaptação do texto cortando de quatro a cinco personagens: meu elenco é pequeno...”

Mas aí, as cabeças que vão rolar são as de outros profissionais: as atrizes. E o produtor – mentor intelectual do crime – apenas precisa de um cúmplice: não de um dramaturgo.


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