Confesso que tenho ido pouco ao teatro, de uns tempos para
cá. Mesmo sendo um dramaturgo.
É que sinto algum desconforto (não me refiro, aqui, ao
desconforto inerente a toda obra de arte que se preze) com quase tudo que vejo
e ouço em cena, no chamado teatro contemporâneo. Ou que é celebrado como tal.
Por isso, senti uma necessidade de me posicionar pública e
oficialmente, compartilhando com mais pessoas aquilo que quem me é mais próximo
já sabe.
Assim, tive o cuidado de relacionar alguns aspectos comuns a
alguns espetáculo que vi, críticas elogiosas que li, ou mesmo, entrevistas de
alguns dramaturgos, atores e diretores. A carapuça – como convém a esse tipo de
análise – é genérica e democrática: quem quiser que a vista.
O indivíduo morreu. E morreu duplamente: como autor e como
personagem. Vejo predominar uma dramaturgia dita coletiva, participativa,
colaborativa, ou seja lá que nome se adote. O indivíduo autor, capaz de
escrever sozinho um texto que encenador e atores possam levar a um palco,
tornou-se uma aberração anacrônica e inaceitável. O resultado, salvo raríssimas
exceções, é uma dramaturgia caótica, sem sentido, sem lógica, sem unidade. Com
várias cabeças pensando e criando um texto, este, muitas vezes não se amarra e
nem fecha. É claro que essa pode até ser uma possibilidade ou uma intenção real
do espetáculo.
Mas, quando a fórmula se repete, também se desgasta. E tudo fica tediosamente igual e previsível.
Mas, quando a fórmula se repete, também se desgasta. E tudo fica tediosamente igual e previsível.
MAIS CADÁVERES Se o indivíduo autor não existe mais – ou, pelo menos, já está
no corredor da morte – a personagem não fica atrás. Na maioria das vezes, o que
vemos no palco são apenas atores dizendo textos fragmentados e, quase sempre,
autorais – já que eles são parte do coletivo que construiu a “dramaturgia” do
espetáculo. Todos querem dar sua cota para a dramaturgia, esquecendo-se que a
maior cota que um ator pode dar é na sua atribuição específica: representar, dar
vida às palavras que pertencem a outros. (Os “outros”, no caso, não são apenas
os autores, mas, principalmente, as próprias personagens.)
Com autor e personagens mortos, o que vemos nos palco são apenas
atores interpretando a si mesmos e tentando convencer o público de que não são
quem são.
Nos raríssimos casos em que há personagens em cena, o que
não há é sua a personalidade visível, a identidade única de cada uma. Todas são
iguais. O que muda é somente a angústia ou a neurose de cada qual. É
impressionante como são todas cúmplices e solidárias entre si: todas riem
juntas, choram juntas, têm o mesmo vocabulário, os mesmos sentimentos, expectativas,
inseguranças, as mesmas reações físicas, cacoetes, prosódia. Se a dramaturgia não se deu ao trabalho de
construir uma personagem, muito menos o fez o ator – mais empenhado em nos
mostrar o que ele chamará de “a dramaturgia do ator”.
Com “personagens” tão homogêneas e pasteurizadas, é normal
ainda que tudo convirja para um só ponto: a mesmice. Assim, fica difícil haver
reviravoltas na trama – quando existe trama - , rupturas, conflitos. Os únicos
conflitos possíveis são os conflitos íntimos e pessoais da personagem que o
ator quer nos convencer de que não é ele próprio. São, no dizer de experiente
diretor de teatro das antigas, “amebas com angústia”. Se uma “personagem” é
traída, sempre haverá outra que lhe será solidária e lhe contará que também já
passou por isso. E ambas chorarão – ou rirão – juntas da situação.
Personagens não morrem, não chutam o balde ou optam por
outro caminho torto. Vilões? Nem pensar! Não há lugar para eles no palco – só
na vida real.
Mas quem quer falar da vida real? A dramaturgia
contemporânea não quer falar do que acontece no país ou no mundo; ou de
qualquer coisa que exista para além da cabeça do ator/dramaturgo ou fora de
suas redes sociais.
Há mais um morto nesse enterro coletivo (o trocadilho não
foi intencional, juro!): o diálogo. Ele está morto não só na sua elaboração técnica,
como em sua essência. O que prevalece é o coro, em configurações diversas e dissimuladas.
As personagens não conversam, não argumentam, não se opõem: apenas fazem coro
entre si, como um animado jogral de escola. São pequenos solilóquios e grandes “bifes” confessionais que se
alternam e que, quase sempre, nem fazem qualquer conexão entre si. Porque os
atores não querem dialogar entre si, mas, o tempo todo, com o público!
PAREDE DEMOLIDA Alguns dramaturgos contemporâneos até admitem essa
preferência em se relacionar diretamente com o espectador. Pra isso,
desconsideram de cara a quarta parede, e colocam seus atores fazendo divagações
ou discursos particularmente voltados para as primeiras fileiras da plateia -
como se o público fosse seu terapeuta de plantão e penico para todas as suas
angústias, carências e frustrações. Uma conversa fortuita entre taxista e
passageiro, por exemplo, tem mais qualidade artística ou conteúdo filosófico
que muita coisa que é levada ao palco, hoje em dia. Mesmo assim, nem sempre
funciona, quando transposta para o palco, porque não se leva junto a
autenticidade ou verossimilhança das personagens originais.
Muitos dramaturgos até confirmam não ter sequer interesse
por uma narrativa, mas têm uma obsessão pela linguagem e pela forma lírica. Ou
seja, não percebem que também há uma grande diferença entre Poesia e
Dramaturgia – embora os dois gêneros possam, até, convergir ocasionalmente.
Não sei se explica muita coisa, mas acho sintomático que,
além do mais, a dramaturgia contemporânea é toda feita por atores, diretores e
dramaturgos jovens para plateias predominantemente jovens. Comumente, não vemos
atores mais velhos em cena. Parece não há lugar para personagens idosas no
teatro contemporâneo – como se os mais velhos sequer fizessem parte da nossa
sociedade, da vida real. Alienação ou mera insensibilidade? Acho que ambas, mas
não há como recomendar aos jovens que amadureçam logo. (“Jovens, envelheçam!” –
dizia Nelson Rodrigues, em vão.)
Minhas impressões acima dizem respeito, claro está, ao
teatro feito pelas elites e para as elites. O grande teatro das comédias
populares que enchem alguns teatros, não se enquadram nessa análise. E nem
quero discriminá-las, no entanto, porque acho que há público para todos os
gêneros e propostas. Mas o grande teatro popular não promete nada além de umas
risadas e não se arvora a lançar ditames sobre o que é contemporâneo ou
experimental. Quem escolhe esse caminho, deve estar preparado para ser bucha de
canhão.
(E olha, que eu nem falei sobre o total descaso para com a
dramaturgia para o público infantil!...)
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