Outro dia fui assistir à
leitura de dois textos dramáticos num evento sobre a produção dramatúrgica
contemporânea.
Em comum, nos dois textos
lidos, é que ambos foram escritos por atores. Mais que isso, porém, outras
similaridades foram sendo reveladas ao longo de cada leitura - não apenas por
mim, mas por vários presentes, como se pôde comprovar depois, no tradicional bate-papo
com os autores, que costuma fechar esse tipo de evento.
O primeiro texto, logo se
viu, era um conto. Um ótimo conto, mas um conto: nunca uma peça teatral. Embora
houvesse dois personagens, apenas um tinha voz e alguma ação. E todo o discurso
da personagem falante era marcado por um tom confessional e pela frontalidade
em relação à plateia. Um ator lia as rubricas que marcavam as mudanças de tempo
e de cena. O que seria a segunda personagem, entrou mudo e saiu calado, sem
dizer uma só palavra. Não havia diálogos. Não havia contracena: lateralidade
zero.
Apreciei a leitura como um
leitor lê um livro. Ou como uma criança a quem a mãe ou o pai lê histórias para
dormir. Por vezes, até fechei os olhos e preferi apenas ouvir o som do que era dito
– já que eram mesmo só rubricas intercaladas com longos solilóquios da
protagonista.
Uma fala da personagem
falante me chamou a atenção: “Eu poderia protagonizar eu mesma!”. E foi o que
fez a autora, sendo atriz e protagonista do seu próprio texto.
A segunda leitura seguiu a
mesma linha: texto confessional, só que com um tom mais memorialístico, recheado
de lembranças da infância do protagonista e com progressão temporal da
narrativa, dos tempos de menino à juventude. Havia alguns diálogos esporádicos,
mas o que prevalecia mesmo era o discurso da personagem central, suas memórias
e sua minuciosa descrição de acontecimentos passados e de personagens que são
apenas referidos na narrativa. O
protagonista masculino era o narrador e, também, todas as personagens masculinas
ocasionalmente necessárias na composição dos diálogos que ponteavam a narrativa.
Outro belo conto: não dramaturgia
– ou, pelo menos, não o que eu entendo como tal.
Tudo bem: alguém vai dizer
que minhas ideias sobre dramaturgia são conservadoras, ultrapassadas ou
caretas. Ou que eu não estou sintonizado com as novas tendências do teatro
contemporâneo. Podem até me acusar de ir
pouco ao teatro e que, por isso, não sei o que estou dizendo.
Pode ser – sei lá.
Mas fiz a opção de ser fiel a
alguns princípios e um deles é não me tornar refém de tendências, não agir nem
pensar maria-vai-com-as-outrasmente. Então, vou na lata.
DRAMATURGIA DO UMBIGO Pude observar – ou apenas confirmar
o que já detectara em outras ocasiões – que o ator que escreve, nunca escreve
para outro ator, mas, invariavelmente, escreve para si próprio. Falta-lhe o
desapego e o distanciamento que o dramaturgo não-ator tem ao escrever uma peça,
ao elaborar personagens que só poderão ser representados por atores de verdade,
com seu ecletismo, diversidade, pesquisa e entrega. Para o ator/dramaturgo é
conveniente, fácil e confortável representar a si próprio, já que conhece,
melhor que ninguém, as intenções subjetivas de sua personagem e as inflexões
mais adequadas para cada “bife” que criou para si mesmo. O ator/dramaturgo
recusa o maior desafio que só os grandes atores almejam e perseguem: a
possibilidade de representar o outro, o diferente, o oposto de si, o estranho.
Assim, é comum o ator/dramaturgo
cair na armadilha fácil de querer transpor para o palco o discurso que seria
mais adequado a outro gênero literário, como a poesia, o conto ou o romance. Ou
pior: tenta levar para a cena – para sofrimento da plateia - o discurso que
melhor caberia em uma sessão de terapia ou análise freudiana. É o que eu chamo
de “dramaturgia do umbigo”.
Muito do que eu pude perceber
durante as duas leituras ainda acabou sendo ratificado ao final, no debate com
os próprios atores/dramaturgos. Ambos relataram que o que haviam apresentado
eram, originalmente, um conto ou escritos esparsos sem fins dramatúrgicos; e
que os adaptaram ou compilaram especialmente para o evento. A autora do
primeiro texto esclareceu que nem havia propriamente personagem em sua história
original – apenas a narradora – e que criou a segunda personagem (a que eu
disse que “entrou muda e saiu calada”) para agregar um viés mais teatral ao
texto.
Já o ator/autor do segundo
texto informou que “costurou num texto só” muita coisa que havia escrito antes.
Tendo feito já algumas experiências com dramaturgia coletiva em seu grupo de
teatro, aquela era a sua primeira experiência de construção de um texto
dramatúrgico individual. Também reconheceu que aquele era um conto, não um
texto teatral.
Questionado por alguém da
plateia sobre a ausência de diálogo e contracena entre personagens, disse
sentir-se à vontade para falar diretamente ao público, numa relação de
frontalidade que considera natural e instintiva para ele e para as novas
dramaturgias.
"GRANDE PROBLEMA" Duas outras colocações do
ator/dramaturgo no debate corroboram minha postura crítica em relação a grande
parte da produção dramatúrgica contemporânea, que parece insistir em prescindir
do trabalho de um dramaturgo de ofício. Ele afirma que escreve para si mesmo e que
a maioria do que escreve, ninguém vê; e que quando é o ator que lê o que ele
próprio escreveu (para o palco) “já se elimina um grande problema”. Ou seja:
ver outro ator dando vida ao seu texto, nem pensar!
O dramaturgo de ofício, por
mais que defenda a integridade de seu texto ante diretores, produtores e
atores, sabe que seu texto não é nada sem o concurso desses outros
profissionais do teatro. O autêntico dramaturgo, nunca escreve para si mesmo,
porque sabe que seu texto não existe sem atores que o digam diante de uma
plateia. Por isso, o verdadeiro dramaturgo é movido pelo desapego, tão
necessário a uma arte de natureza intrinsecamente colaborativa como o teatro –
em oposição ao individualismo natural e característico dos demais gêneros
literários.
Por tudo isso, não hesito em
recomendar aos atores que queiram se expressar através do teatro, que o façam –
até por respeito ao seu próprio ofício de ator – essencialmente como atores. Se
querem escrever, outros gêneros literários os acolherão simultaneamente, sem
prejuízo de sua atuação em cena. Mas, se desejam escrever para teatro, publiquem
seus contos e poemas em livros; discutam seus traumas e frustrações na terapia;
procurem conhecer as regras e técnicas específicas do ofício dramatúrgico (até para
subvertê-las); reabilitem os diálogos; e – especialmente - escrevam peças para
outros atores.