terça-feira, 14 de maio de 2013

A nova dramaturgia do umbigo


Outro dia fui assistir à leitura de dois textos dramáticos num evento sobre a produção dramatúrgica contemporânea.

Em comum, nos dois textos lidos, é que ambos foram escritos por atores. Mais que isso, porém, outras similaridades foram sendo reveladas ao longo de cada leitura - não apenas por mim, mas por vários presentes, como se pôde comprovar depois, no tradicional bate-papo com os autores, que costuma fechar esse tipo de evento.

O primeiro texto, logo se viu, era um conto. Um ótimo conto, mas um conto: nunca uma peça teatral. Embora houvesse dois personagens, apenas um tinha voz e alguma ação. E todo o discurso da personagem falante era marcado por um tom confessional e pela frontalidade em relação à plateia. Um ator lia as rubricas que marcavam as mudanças de tempo e de cena. O que seria a segunda personagem, entrou mudo e saiu calado, sem dizer uma só palavra. Não havia diálogos. Não havia contracena: lateralidade zero.

Apreciei a leitura como um leitor lê um livro. Ou como uma criança a quem a mãe ou o pai lê histórias para dormir. Por vezes, até fechei os olhos e preferi apenas ouvir o som do que era dito – já que eram mesmo só rubricas intercaladas com longos solilóquios da protagonista.

Uma fala da personagem falante me chamou a atenção: “Eu poderia protagonizar eu mesma!”. E foi o que fez a autora, sendo atriz e protagonista do seu próprio texto.

A segunda leitura seguiu a mesma linha: texto confessional, só que com um tom mais memorialístico, recheado de lembranças da infância do protagonista e com progressão temporal da narrativa, dos tempos de menino à juventude. Havia alguns diálogos esporádicos, mas o que prevalecia mesmo era o discurso da personagem central, suas memórias e sua minuciosa descrição de acontecimentos passados e de personagens que são apenas referidos na narrativa.  O protagonista masculino era o narrador e, também, todas as personagens masculinas ocasionalmente necessárias na composição dos diálogos que ponteavam a narrativa.  

Outro belo conto: não dramaturgia – ou, pelo menos, não o que eu entendo como tal.

Tudo bem: alguém vai dizer que minhas ideias sobre dramaturgia são conservadoras, ultrapassadas ou caretas. Ou que eu não estou sintonizado com as novas tendências do teatro contemporâneo.  Podem até me acusar de ir pouco ao teatro e que, por isso, não sei o que estou dizendo.

Pode ser – sei lá.

Mas fiz a opção de ser fiel a alguns princípios e um deles é não me tornar refém de tendências, não agir nem pensar maria-vai-com-as-outrasmente. Então, vou na lata.

DRAMATURGIA DO UMBIGO  Pude observar – ou apenas confirmar o que já detectara em outras ocasiões – que o ator que escreve, nunca escreve para outro ator, mas, invariavelmente, escreve para si próprio. Falta-lhe o desapego e o distanciamento que o dramaturgo não-ator tem ao escrever uma peça, ao elaborar personagens que só poderão ser representados por atores de verdade, com seu ecletismo, diversidade, pesquisa e entrega. Para o ator/dramaturgo é conveniente, fácil e confortável representar a si próprio, já que conhece, melhor que ninguém, as intenções subjetivas de sua personagem e as inflexões mais adequadas para cada “bife” que criou para si mesmo. O ator/dramaturgo recusa o maior desafio que só os grandes atores almejam e perseguem: a possibilidade de representar o outro, o diferente, o oposto de si, o estranho.

Assim, é comum o ator/dramaturgo cair na armadilha fácil de querer transpor para o palco o discurso que seria mais adequado a outro gênero literário, como a poesia, o conto ou o romance. Ou pior: tenta levar para a cena – para sofrimento da plateia - o discurso que melhor caberia em uma sessão de terapia ou análise freudiana. É o que eu chamo de “dramaturgia do umbigo”.

Muito do que eu pude perceber durante as duas leituras ainda acabou sendo ratificado ao final, no debate com os próprios atores/dramaturgos. Ambos relataram que o que haviam apresentado eram, originalmente, um conto ou escritos esparsos sem fins dramatúrgicos; e que os adaptaram ou compilaram especialmente para o evento. A autora do primeiro texto esclareceu que nem havia propriamente personagem em sua história original – apenas a narradora – e que criou a segunda personagem (a que eu disse que “entrou muda e saiu calada”) para agregar um viés mais teatral ao texto.

Já o ator/autor do segundo texto informou que “costurou num texto só” muita coisa que havia escrito antes. Tendo feito já algumas experiências com dramaturgia coletiva em seu grupo de teatro, aquela era a sua primeira experiência de construção de um texto dramatúrgico individual. Também reconheceu que aquele era um conto, não um texto teatral.

Questionado por alguém da plateia sobre a ausência de diálogo e contracena entre personagens, disse sentir-se à vontade para falar diretamente ao público, numa relação de frontalidade que considera natural e instintiva para ele e para as novas dramaturgias.

"GRANDE PROBLEMA"  Duas outras colocações do ator/dramaturgo no debate corroboram minha postura crítica em relação a grande parte da produção dramatúrgica contemporânea, que parece insistir em prescindir do trabalho de um dramaturgo de ofício. Ele afirma que escreve para si mesmo e que a maioria do que escreve, ninguém vê; e que quando é o ator que lê o que ele próprio escreveu (para o palco) “já se elimina um grande problema”. Ou seja: ver outro ator dando vida ao seu texto, nem pensar!

O dramaturgo de ofício, por mais que defenda a integridade de seu texto ante diretores, produtores e atores, sabe que seu texto não é nada sem o concurso desses outros profissionais do teatro. O autêntico dramaturgo, nunca escreve para si mesmo, porque sabe que seu texto não existe sem atores que o digam diante de uma plateia. Por isso, o verdadeiro dramaturgo é movido pelo desapego, tão necessário a uma arte de natureza intrinsecamente colaborativa como o teatro – em oposição ao individualismo natural e característico dos demais gêneros literários.

Por tudo isso, não hesito em recomendar aos atores que queiram se expressar através do teatro, que o façam – até por respeito ao seu próprio ofício de ator – essencialmente como atores. Se querem escrever, outros gêneros literários os acolherão simultaneamente, sem prejuízo de sua atuação em cena. Mas, se desejam escrever para teatro, publiquem seus contos e poemas em livros; discutam seus traumas e frustrações na terapia; procurem conhecer as regras e técnicas específicas do ofício dramatúrgico (até para subvertê-las); reabilitem os diálogos; e – especialmente - escrevam peças para outros atores.