Revirando velhos arquivos em meu computador, encontrei um artigo que escrevi em 2002 (apenas dois anos depois da minha estreia como dramaturgo), e que cheguei a publicar não me lembro mais onde (acho que na Revista de Teatro, da SBAT). Reli, fiz algumas pequenas atualizações, correções de rumo e ortográficas, e achei oportuno republicar aqui, já que pouca coisa mudou nesses pouco mais de dez anos (além da queda do trema e de alguns hífens e acentos, claro)...
Os dramaturgos estão mortos
Os dramaturgos estão
mais vivos do que nunca. Claro, estou falando de Shakespeare, Nélson Rodrigues
e, talvez, Brecht. E, claro, falo também de muitos diretores e atores,
apologistas de uma dramaturgia própria, sem dramaturgos. O dramaturgo à moda
antiga, aquele que se senta diante de um papel em branco e escreve uma
história, esse já está em outra: mortinho da silva.
Antes de mais nada, não
quero apenas ressuscitar aqui uma nova/velha polêmica sobre o texto teatral;
sobre se o texto é ou não é teatro enquanto não vai parar na boca do ator em
cena; ou se o diretor é o verdadeiro autor da obra teatral; se o ator pode ser
também um autor da história que interpreta. Apenas quero defender o espaço de
atuação de um profissional tão importante no fazer teatro, como qualquer outra
peça desse complexo mecanismo.
Se, no cinema, o
roteirista é sempre chamado a escrever e reescrever uma história para adequá-la
ao orçamento do produtor, ou mesmo às ideias do diretor, o mesmo não ocorre no
teatro, onde diretores, atores e até figurinistas se sentem no direito de meter
o bedelho e recompor diálogos e sequências cênicas, sem qualquer consulta ao
autor da história.
Há diretores que afirmam
taxativamente, que só encenam autores mortos, porque estes não podem reclamar.
Felizmente, há exceções. Conheço um diretor que prefere montar autor vivo. “Um
autor vivo ao alcance de um telefonema é a minha melhor fonte de consulta e
esclarecimentos”, justifica.
Entretanto, o processo colaborativo
– ou qualquer outra denominação similar sob a qual se abriga – envolvendo
diretor, elenco e, às vezes, diretor de arte, cenógrafo, figurinista ou diretor
musical, quase sempre ignora a existência de um profissional do texto: o
dramaturgo.
Após lerem todas as
teorias sobre teatro, participarem de todos os workshops sobre técnicas de
artes cênicas, estudarem os clássicos gregos à exaustão, diretores e atores, em
sua maioria, não conseguem pôr em prática o simples contar histórias e, quando
o pano é aberto, o que se vê é, quase sempre, o privilégio da forma em prejuízo
do conteúdo. Espetáculos feéricos, meticulosamente marcados e coreografados,
com cenários dinâmicos e grandiosos –
ou, ao contrário, palcos (e, às vezes, atores) inteiramente nus, têm sido a
tônica do que se vê em cena. E a crítica especializada lhes tece loas de experimentalismo
revolucionário, estética vanguardista e discurso contemporâneo.
VELHOS E NOVOS Todas as experimentações
recentes, porém, são mais plásticas, visuais. A linguagem, no Brasil,
praticamente não se renova desde Nélson Rodrigues, Guarniéri ou Plínio Marcos.
Encenadores e produtores não se arriscam com novos textos e, principalmente,
novos autores. Preferem regurgitar o que já foi renovador um dia. No teatro
infantil então, a falta de ousadia é gritante. Basta ver a programação de
teatro de qualquer metrópole cultural do país, para se constatar a
predominância de adaptações de contos de fadas e clássicos da literatura
infantil, roubando ainda, aos pais, o doce hábito de contar histórias à
cabeceira de seus filhos, como faziam os pais de antanho.
Prescindir de se ter um
dramaturgo à mão pode ser também conveniente à produção, por razões econômicas
(voltarei a esse tema oportunamente.). Sai mais em conta montar uma história de
domínio público, que contratar um dramaturgo para escrever uma história
inédita. Adaptar um clássico também é coisa que qualquer diretor pode ir
fazendo, durante os ensaios, com a ajuda dos atores.
Outro recurso usado é o
de comprar direitos de autores estrangeiros, apostando em que o que é sucesso
na Europa ou em Nova York, vai estourar também aqui. Nesse caso, paga-se um
tradutor a preço fixo por página e evita-se o risco de investir em um autor
nacional pouco conhecido. Nesses casos, não seria um despropósito pensar que
falta a quem escolhe textos para encenar, qualquer embasamento literário ou
artístico mais específico, usando, para tal, critérios exclusivamente
econômicos e mercadológicos.
Não se pode deixar de
fazer uma referência aqui, ainda, à caçula das dramaturgias: a dramaturgia do
ator. Dramaturgia do ator, pra quem não sabe, é aquele processo de criação em
que o diretor dá um mote (ou nem isso) e o ator se desdobra em improvisações
para criar situações, cenas, coreografias e diálogos que depois, no programa
impresso e no cartaz, não recebem crédito ou são assinados pelo diretor. Grande
parte dos atores, sobretudo os mais jovens, adora o processo, e, com
impressionante estoicismo, sente-se privilegiada por ter participado da
criação. Atores veteranos, no entanto, se ressentem da ausência de textos
prontos, tramas minimamente elaboradas, personagens definidas (mas não
concluídas) que lhes permitam o exercício menos visual/coreográfico e mais
psicológico/interior de interpretação. Em trabalhos construídos coletivamente, já
vi atores se recusando a dizer um texto por não concordarem com o que o
dramaturgo escreveu, mesmo tendo este apenas dado forma às improvisações
realizadas pelo próprio elenco. Também há situações em que o ator não sabe o
que é ou como empregar adequadamente um pronome oblíquo, desconhece a função de
um advérbio e não tem a menor idéia do que seja um verbo defectivo, mas julga
que é mais capaz de escrever um texto que um dramaturgo. Situações inversas –
em que um dramaturgo se sente o único ou o melhor ator para o seu texto - , embora
existam, são bem mais raras, mas tendem a se tornar mais comuns por uma questão
de sobrevivência do profissional.
Talvez
nem fosse necessário dizê-lo, mas tudo o que foi dito acima é uma generalização
acerca de observações feitas por mim. Há exceções, honrosas exceções, mas
alguns encenadores e atores precisam entender que nem sempre um dramaturgo quer
competir com eles pela autoria do espetáculo. Muitas vezes, o que ele quer é
apenas sobreviver ou ter assegurado seu espaço de trabalho, como qualquer
profissional. E deve lutar por esse espaço como diretores e atores lutam pelos
seus. Nada impede, entretanto, que essa luta seja pautada pela generosidade e respeito
profissional recíprocos. Cada qual no seu cada qual.
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