sábado, 13 de abril de 2013

Do fundo do baú


Revirando velhos arquivos em meu computador, encontrei um artigo que escrevi em 2002 (apenas dois anos depois da minha estreia como dramaturgo), e que cheguei a publicar não me lembro mais onde (acho que na Revista de Teatro, da SBAT). Reli, fiz algumas pequenas atualizações, correções de rumo e ortográficas, e achei oportuno republicar aqui, já que pouca coisa mudou nesses pouco mais de dez anos (além da queda do trema e de alguns hífens e acentos, claro)...

 Os dramaturgos estão mortos

Os dramaturgos estão mais vivos do que nunca. Claro, estou falando de Shakespeare, Nélson Rodrigues e, talvez, Brecht. E, claro, falo também de muitos diretores e atores, apologistas de uma dramaturgia própria, sem dramaturgos. O dramaturgo à moda antiga, aquele que se senta diante de um papel em branco e escreve uma história, esse já está em outra: mortinho da silva.
Antes de mais nada, não quero apenas ressuscitar aqui uma nova/velha polêmica sobre o texto teatral; sobre se o texto é ou não é teatro enquanto não vai parar na boca do ator em cena; ou se o diretor é o verdadeiro autor da obra teatral; se o ator pode ser também um autor da história que interpreta. Apenas quero defender o espaço de atuação de um profissional tão importante no fazer teatro, como qualquer outra peça desse complexo mecanismo.
Se, no cinema, o roteirista é sempre chamado a escrever e reescrever uma história para adequá-la ao orçamento do produtor, ou mesmo às ideias do diretor, o mesmo não ocorre no teatro, onde diretores, atores e até figurinistas se sentem no direito de meter o bedelho e recompor diálogos e sequências cênicas, sem qualquer consulta ao autor da história.
Há diretores que afirmam taxativamente, que só encenam autores mortos, porque estes não podem reclamar. Felizmente, há exceções. Conheço um diretor que prefere montar autor vivo. “Um autor vivo ao alcance de um telefonema é a minha melhor fonte de consulta e esclarecimentos”, justifica.
Entretanto, o processo colaborativo – ou qualquer outra denominação similar sob a qual se abriga – envolvendo diretor, elenco e, às vezes, diretor de arte, cenógrafo, figurinista ou diretor musical, quase sempre ignora a existência de um profissional do texto: o dramaturgo.
Após lerem todas as teorias sobre teatro, participarem de todos os workshops sobre técnicas de artes cênicas, estudarem os clássicos gregos à exaustão, diretores e atores, em sua maioria, não conseguem pôr em prática o simples contar histórias e, quando o pano é aberto, o que se vê é, quase sempre, o privilégio da forma em prejuízo do conteúdo. Espetáculos feéricos, meticulosamente marcados e coreografados, com cenários dinâmicos e  grandiosos – ou, ao contrário, palcos (e, às vezes, atores) inteiramente nus, têm sido a tônica do que se vê em cena. E a crítica especializada lhes tece loas de experimentalismo revolucionário, estética vanguardista e discurso contemporâneo.
VELHOS E NOVOS Todas as experimentações recentes, porém, são mais plásticas, visuais. A linguagem, no Brasil, praticamente não se renova desde Nélson Rodrigues, Guarniéri ou Plínio Marcos. Encenadores e produtores não se arriscam com novos textos e, principalmente, novos autores. Preferem regurgitar o que já foi renovador um dia. No teatro infantil então, a falta de ousadia é gritante. Basta ver a programação de teatro de qualquer metrópole cultural do país, para se constatar a predominância de adaptações de contos de fadas e clássicos da literatura infantil, roubando ainda, aos pais, o doce hábito de contar histórias à cabeceira de seus filhos, como faziam os pais de antanho.
Prescindir de se ter um dramaturgo à mão pode ser também conveniente à produção, por razões econômicas (voltarei a esse tema oportunamente.). Sai mais em conta montar uma história de domínio público, que contratar um dramaturgo para escrever uma história inédita. Adaptar um clássico também é coisa que qualquer diretor pode ir fazendo, durante os ensaios, com a ajuda dos atores.
Outro recurso usado é o de comprar direitos de autores estrangeiros, apostando em que o que é sucesso na Europa ou em Nova York, vai estourar também aqui. Nesse caso, paga-se um tradutor a preço fixo por página e evita-se o risco de investir em um autor nacional pouco conhecido. Nesses casos, não seria um despropósito pensar que falta a quem escolhe textos para encenar, qualquer embasamento literário ou artístico mais específico, usando, para tal, critérios exclusivamente econômicos e mercadológicos.
Não se pode deixar de fazer uma referência aqui, ainda, à caçula das dramaturgias: a dramaturgia do ator. Dramaturgia do ator, pra quem não sabe, é aquele processo de criação em que o diretor dá um mote (ou nem isso) e o ator se desdobra em improvisações para criar situações, cenas, coreografias e diálogos que depois, no programa impresso e no cartaz, não recebem crédito ou são assinados pelo diretor. Grande parte dos atores, sobretudo os mais jovens, adora o processo, e, com impressionante estoicismo, sente-se privilegiada por ter participado da criação. Atores veteranos, no entanto, se ressentem da ausência de textos prontos, tramas minimamente elaboradas, personagens definidas (mas não concluídas) que lhes permitam o exercício menos visual/coreográfico e mais psicológico/interior de interpretação. Em trabalhos construídos coletivamente, já vi atores se recusando a dizer um texto por não concordarem com o que o dramaturgo escreveu, mesmo tendo este apenas dado forma às improvisações realizadas pelo próprio elenco. Também há situações em que o ator não sabe o que é ou como empregar adequadamente um pronome oblíquo, desconhece a função de um advérbio e não tem a menor idéia do que seja um verbo defectivo, mas julga que é mais capaz de escrever um texto que um dramaturgo. Situações inversas – em que um dramaturgo se sente o único ou o melhor ator para o seu texto - , embora existam, são bem mais raras, mas tendem a se tornar mais comuns por uma questão de sobrevivência do profissional.
           Talvez nem fosse necessário dizê-lo, mas tudo o que foi dito acima é uma generalização acerca de observações feitas por mim. Há exceções, honrosas exceções, mas alguns encenadores e atores precisam entender que nem sempre um dramaturgo quer competir com eles pela autoria do espetáculo. Muitas vezes, o que ele quer é apenas sobreviver ou ter assegurado seu espaço de trabalho, como qualquer profissional. E deve lutar por esse espaço como diretores e atores lutam pelos seus. Nada impede, entretanto, que essa luta seja pautada pela generosidade e respeito profissional recíprocos. Cada qual no seu cada qual.


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