Praticamente tudo o que se poderia falar mal (para o bem!)
do teatro infantil, já foi dito (ou escrito) pelo crítico e dramaturgo Dib
Carneiro Neto em seu livro Pecinha é a
vovozinha! (DBA Editora). Mas, até correndo o risco de repeti-lo em alguns
momentos, não posso deixar de fazer algumas considerações pessoais sobre o que
vejo – ou não vejo – no teatro que se faz, hoje, para nossas crianças.
O livro de Dib: considerações pertinentes e oportunas sobre teatro infantil |
De um modo geral, está evidente pra mim que a dramaturgia
para crianças padece, quase sempre, da mesma praga que, há anos, persegue a
literatura infantil: o estranho princípio de que toda criança é estúpida e
incapaz.
Assim, invariavelmente, os textos levados à cena, parecem
pressupor que nenhuma criança será capaz de entender o que não for explícito ou,
preferencialmente, pré-mastigado para ingestão – como fazem muitas aves ao
alimentarem seus filhotes.
Mas por que essa tendência – ou recorrência?
Ouso tentar encontrar respostas. Ou, no mínimo, provocar o
debate e novos questionamentos inevitáveis...
Vejo uma cruel - e talvez involuntária – participação da
escola, nesse sistema. A escola (e aqui me refiro tanto à instituição quanto a alguns
educadores isoladamente) tornou-se, com o passar dos anos, uma interlocutora ou
mediadora essencial entre Teatro e público, exigindo, de alguma forma, em
contrapartida, a instrumentalização do primeiro visando à “formação” do
segundo.
Assim, da mesma forma que a leitura obrigatória de um José
de Alencar nos meus tempos de ginásio era uma tortura para nós, crianças,
meninos e meninas de hoje são obrigados a “curtir” o tipo de teatro que a
escola lhes impõe, com fins didáticos muitas vezes questionáveis. Da mesma
forma que os autores modernos e contemporâneos de quarenta anos atrás eram persona non grata no currículo escolar,
o teatro que se faz hoje só adentra o território da escola se tiver uma linguagem
ou estética, no máximo, mariaclaramachadiana.
E é triste ver que o fantasminha Pluft, muitas vezes, ainda tem que disputar a
tapa espaço com o ursinho Puf!
Impulsionado por grandes compras governamentais, o mercado
de livros para crianças viveu um grande boom,
nas últimas décadas, no Brasil. Em um sistema similar e em menor escala, o
teatro para crianças também tem conquistado cada vez mais espaço, impulsionado
por leis de incentivo e mecanismos que favorecem uma criação e expressão
artísticas pedagogicamente engajadas ou objetivas. Aí, alguns artistas são
forçados a ceder a pressões e a fazer concessões para se manterem vivos.
É quando, inevitavelmente, são obrigados a aderir a uma
ideologia do politicamente correto que o sistema adota, privilegia e até endeusa.
É a ditadura dos finais felizes e moralizantes; da punição exemplar, inapelável
e imediata de vilões caricatos ou estereotipados (os vilões reais, bem o sabemos,
sempre podem se valer de embargos infringentes e protelatórios e outros
mecanismos que favorecem a impunidade – mas este seria um tema não adequado às
nossas crianças); do patrulhamento de personagens (você pode falar mal do
tabagismo, mas não pode ter um personagem tabagista em sua história); ou da seleção
e abordagem de temas a partir de conteúdos didaticopedagógicos desejáveis.
O sistema criou e alimenta uma cadeia perversa e altamente
danosa à formação da criança, quer seja como indivíduo, cidadão ou futuro
apreciador de Arte. O governo incentiva o teatro que é feito para ser levado à
escola; que, por sua vez, adquire o espetáculo que corresponde às expectativas ou
a uma ideologia afinada com as políticas governamentais de Educação ou de
fomento à produção artística e cultural; que leva os produtores teatrais a optar
por montar espetáculos potencialmente simpáticos aos governos e escola, de modo
a assegurar aprovação nas leis de incentivo e a venda do seu produto; etc., etc.,
etc...
A dramaturgia? Ela que se adapte, se quer sair do papel,
virar espetáculo e chegar à criança.
Que estímulo tem então o dramaturgo de ofício ou vocação, se
raramente lhe solicitam textos originais, mas, quase sempre, apenas adaptações
de best-sellers infantis ou juvenis
do momento, eternos contos de fadas clássicos, blockbusters do cinema, desenhos animados da tv ou até games? Por que ou pra que escrever
histórias afinadas com a nossa rica diversidade cultural, nosso folclore, nossa
língua, nossa História, nossos costumes e, até, nossos erros, pecados e
vergonhas, se o teatro tem sido forçado a abdicar de sua essência artística e
cultural para servir prioritariamente aos interesses pedagógicos ou ideológicos
de escola ou de governos?
Nesse cenário, é cada vez mais raro encontrar-se um
dramaturgo independente e livre; que escreva por fidelidade apenas ao seu
próprio pensamento e ao seu público final (a criança); que tenha autonomia
crítica e estilo próprio; que sirva à sua arte e não ao sistema político ou
econômico que o manieta e sustenta.
E é nessa batida que, cada vez que ouço “Puf!”, num palco,
penso logo que não é o nome de um personagem urso, mas uma onomatopeia que indica que
mais um dramaturgo saiu de cena como se por encanto – ou maldição.
(Há mais a falar sobre o tema, mas fica para posts futuros.)
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