domingo, 1 de dezembro de 2013

Puf versus Pluft

Praticamente tudo o que se poderia falar mal (para o bem!) do teatro infantil, já foi dito (ou escrito) pelo crítico e dramaturgo Dib Carneiro Neto em seu livro Pecinha é a vovozinha! (DBA Editora). Mas, até correndo o risco de repeti-lo em alguns momentos, não posso deixar de fazer algumas considerações pessoais sobre o que vejo – ou não vejo – no teatro que se faz, hoje, para nossas crianças.
O livro de Dib:
considerações
pertinentes e
oportunas
sobre
teatro infantil

De um modo geral, está evidente pra mim que a dramaturgia para crianças padece, quase sempre, da mesma praga que, há anos, persegue a literatura infantil: o estranho princípio de que toda criança é estúpida e incapaz.

Assim, invariavelmente, os textos levados à cena, parecem pressupor que nenhuma criança será capaz de entender o que não for explícito ou, preferencialmente, pré-mastigado para ingestão – como fazem muitas aves ao alimentarem seus filhotes.

Mas por que essa tendência – ou recorrência?

Ouso tentar encontrar respostas. Ou, no mínimo, provocar o debate e novos questionamentos inevitáveis...

Vejo uma cruel - e talvez involuntária – participação da escola, nesse sistema. A escola (e aqui me refiro tanto à instituição quanto a alguns educadores isoladamente) tornou-se, com o passar dos anos, uma interlocutora ou mediadora essencial entre Teatro e público, exigindo, de alguma forma, em contrapartida, a instrumentalização do primeiro visando à “formação” do segundo.

Assim, da mesma forma que a leitura obrigatória de um José de Alencar nos meus tempos de ginásio era uma tortura para nós, crianças, meninos e meninas de hoje são obrigados a “curtir” o tipo de teatro que a escola lhes impõe, com fins didáticos muitas vezes questionáveis. Da mesma forma que os autores modernos e contemporâneos de quarenta anos atrás eram persona non grata no currículo escolar, o teatro que se faz hoje só adentra o território da escola se tiver uma linguagem ou estética, no máximo, mariaclaramachadiana. E é triste ver que o fantasminha Pluft, muitas vezes, ainda tem que disputar a tapa espaço com o ursinho Puf!

Impulsionado por grandes compras governamentais, o mercado de livros para crianças viveu um grande boom, nas últimas décadas, no Brasil. Em um sistema similar e em menor escala, o teatro para crianças também tem conquistado cada vez mais espaço, impulsionado por leis de incentivo e mecanismos que favorecem uma criação e expressão artísticas pedagogicamente engajadas ou objetivas. Aí, alguns artistas são forçados a ceder a pressões e a fazer concessões para se manterem vivos.

É quando, inevitavelmente, são obrigados a aderir a uma ideologia do politicamente correto que o sistema adota, privilegia e até endeusa. É a ditadura dos finais felizes e moralizantes; da punição exemplar, inapelável e imediata de vilões caricatos ou estereotipados (os vilões reais, bem o sabemos, sempre podem se valer de embargos infringentes e protelatórios e outros mecanismos que favorecem a impunidade – mas este seria um tema não adequado às nossas crianças); do patrulhamento de personagens (você pode falar mal do tabagismo, mas não pode ter um personagem tabagista em sua história); ou da seleção e abordagem de temas a partir de conteúdos didaticopedagógicos desejáveis.

O sistema criou e alimenta uma cadeia perversa e altamente danosa à formação da criança, quer seja como indivíduo, cidadão ou futuro apreciador de Arte. O governo incentiva o teatro que é feito para ser levado à escola; que, por sua vez, adquire o espetáculo que corresponde às expectativas ou a uma ideologia afinada com as políticas governamentais de Educação ou de fomento à produção artística e cultural; que leva os produtores teatrais a optar por montar espetáculos potencialmente simpáticos aos governos e escola, de modo a assegurar aprovação nas leis de incentivo e a venda do seu produto; etc., etc., etc...

A dramaturgia? Ela que se adapte, se quer sair do papel, virar espetáculo e chegar à criança.

Que estímulo tem então o dramaturgo de ofício ou vocação, se raramente lhe solicitam textos originais, mas, quase sempre, apenas adaptações de best-sellers infantis ou juvenis do momento, eternos contos de fadas clássicos, blockbusters do cinema, desenhos animados da tv ou até games? Por que ou pra que escrever histórias afinadas com a nossa rica diversidade cultural, nosso folclore, nossa língua, nossa História, nossos costumes e, até, nossos erros, pecados e vergonhas, se o teatro tem sido forçado a abdicar de sua essência artística e cultural para servir prioritariamente aos interesses pedagógicos ou ideológicos de escola ou de governos?

Nesse cenário, é cada vez mais raro encontrar-se um dramaturgo independente e livre; que escreva por fidelidade apenas ao seu próprio pensamento e ao seu público final (a criança); que tenha autonomia crítica e estilo próprio; que sirva à sua arte e não ao sistema político ou econômico que o manieta e sustenta.

E é nessa batida que, cada vez que ouço “Puf!”, num palco, penso logo que não é o nome de um personagem urso, mas uma onomatopeia que indica que mais um dramaturgo saiu de cena como se por encanto – ou maldição.

(Há mais a falar sobre o tema, mas fica para posts futuros.)



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