sábado, 4 de janeiro de 2014

Aos que vieram antes


É inevitável não pensar neles, os velhos atores e atrizes. Onde estarão agora? Teriam se aposentado por tempo de trabalho e, por isso, saíram de cena? Afinal, é essa a ordem natural de qualquer atividade profissional e, no caso do Teatro, “sair de cena” não é apenas retórica: é real.

Digo isso porque não vejo, na chamada dramaturgia contemporânea, personagens que contemplem atores e atrizes que já passaram dos cinquenta – ou, talvez, um pouco menos. Eu, que já estou ficando chato por protestar contra vários clichês injustificáveis da cena contemporânea, me meto, agora, a questionar mais esse porém: o que estão fazendo aos velhos atores e atrizes, os dramaturgos de hoje?

A tão propalada e festejada cena contemporânea pauta-se, quase sempre, pela construção coletiva de um texto dramatúrgico (quando há, efetivamente, um texto dramatúrgico envolvido no processo) totalmente conformado ao elenco que irá encená-lo. Os grupos que são adeptos desse processo de criação, também, quase sempre, são formados por jovens atores – ou por quem acha que encontrou o que quer fazer da vida (até que as contas e dívidas começam a se acumular e o sujeito troca a promissora carreira de artista por um bem mais promissor cargo no serviço público).

Jovens atores fazem jovens personagens que, como sabemos, não passam de reflexos ampliados de si mesmos, na dramaturgia/terapia de grupo que assola o teatro contemporâneo. Eles têm o physique du rôle para representar, sempre, um mesmo papel: o de si próprios.  

Para esses atores e atrizes, personagens não envelhecem, não padecem de angústias ou transformações que só a maturidade pode proporcionar ao indivíduo. E, como ainda não amadureceram e se sentem imunes à inexorável ação do tempo, não têm ideia do que seja isso. Como aquele jovem que diz ignorar os fatos que desencadearam a Inconfidência Mineira ou da Segunda Guerra Mundial só porque não viveu aquela época, não era nascido ainda. Ou que (como pude testemunhar em meu período já tardio na faculdade) não aprecia os filmes de Chaplin porque são em preto e branco, mudos, a câmera praticamente não se move e os efeitos especiais são “toscos”!

Assim, nessa dramaturgia feita pelo grupo e para o grupo, não há lugar para physiques du rôle “alternativos” ou “diferenciados”.  Não importa que o personagem seja um pai mais maduro, avô, velho guru, mentor esclerosado, profeta caquético, cientista caduco, Matusalém, Papai Noel ou Preto Velho. É como se, no teatro, a expectativa de vida dos personagens nunca passasse de trinta anos! Então, se o elenco é jovem, só pode haver personagens jovens em cena – e só eles detêm a verdade, o savoir faire, ou conhecem a Tramontana! (Mas, na certa, nem devem conhecer essa expressão; estão correndo agora para o Google...)

A arte é uma atividade que pode não requerer o mesmo vigor físico exigido a quem trabalha na construção civil, mineração ou estiva. Mas não é apenas por usar mais a voz e o coração que bíceps e tríceps, que o ator (ou atriz) é mais longevo. É, também, porque o Teatro o conserva jovem de espírito até seus últimos dias. O Teatro lhe proporciona vivências que o mantêm em permanente sintonia com seu tempo e, simultaneamente, receptivo ao novo. Atores e atrizes, em geral, tendem mais a se manter permanentemente jovens. Os jovens atores-diretores-dramaturgos, contudo, não parecem ser capazes de identificar essa permanente juventude numa cabeça branca ou já calva; ou de perceber que estas ainda poderiam compartir o palco e experiências com eles por muito tempo.

Se insisto, portanto, em que a cena contemporânea está contaminada por uma dramaturgia autoprojetiva e egoísta que hipervaloriza o ator como seu próprio personagem - em detrimento do personagem que desafia o ator a construí-lo e lhe dar vida – é porque tudo me faz pensar assim. Essa eliminação sumária de personagens mais velhos, afinal, talvez reflita apenas uma realidade cruel dos nossos tempos, em que os idosos são atropelados pela velocidade da vida moderna, marginalizados pelas novas tecnologias e segregados, esquecidos e desrespeitados pelas novas gerações.

Esse conflito, por si só, já daria uma peça. Afinal, se isso acontece na vida real, também há de ter lugar num palco. Mas, que dramaturgia contemporânea a abraçaria, se nem há physiques du rôle entre os jovens e radicais praticantes e apologistas do teatro físico e suas variações?

“Jovens, envelheçam!” O teatro contemporâneo talvez necessite adotar esse sábio conselho do velho Nélson Rodrigues.


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